Beasts of no Nation e o projeto da vida de Cary Fukunaga

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Já está no ar o tão aguardado primeiro filme do Netflix. Mais do que pela história, “Beasts of no Nation” deve ser (mais) um hit do serviço de streaming devido ao fato de que é uma aposta para o Oscar e graças à polêmica de ter sido boicotado pelas principais redes de cinema dos Estados Unidos. O filme, porém, não é do Netflix. É um projeto pessoal de Cary Joji Fukunaga (vencedor do Emmy por “True Detective”), que demorou uma década até ver o sonho realizado.

Antes mesmo da ligação de Ted Sarandos (chefe de conteúdo do serviço), oferecendo um contrato de distribuição, o diretor já havia passado por inúmeras dificuldades durante das gravações, em Gana. Eram equipamentos presos na alfândega; figurantes detidos, pois o governo local suspeitava que fossem mercenários; a necessidade de operar a câmera, após uma lesão do cinegrafista; e para piorar, um surto de malária que colocou em risco a vida da equipe.

Além de trabalhar com a HBO em “True Detective”, Fukunaga já havia chamado atenção com o aclamado “Sin Nombre”, seu longa de estreia, e a elogiada adaptação de “Jane Eyre”, com e Mia Wasikowska e Michael Fassbender. Ele sabe muito bem a importância da tela grande para contar uma história. “Eu sei que a melhor maneira de ver o filme está em um cinema. É melhor para o som, melhor para a imagem e a melhor maneira de sentir a energia na sala. A experiência emocional ampliada por compartilhá-lo com outras pessoas é o melhor feito no cinema”, declarou ao The Guardian.


Na época em que rodava “Beasts of no Nation”, Cary Fukunaga ainda não era o conhecido diretor de “True Detective”. Sem nome, poucos eram os interessados em distribuir um filme que fala sobre uma guerra na África, com um elenco negro, e apenas um ator conhecido – Idris Elba. Foi aí que a proposta do Netflix falou mais alto. "Claro que eu gostaria que o filme fosse visto no cinema, mas gostaria, principalmente, de que este filme chegasse ao maior número possível de pessoas", disse à AFP.

Lançado oficialmente no último dia 16, o filme deve ter mais audiência que alguns dos principais blockbusters do ano. Isso porque está em destaque para os quase 70 milhões de assinantes do serviço. Como as contas costumam ser compartilhadas, o número de pessoas atingidas pode ser multiplicado. Mas o Netflix quer mais. Depois de conquistar papel de destaque nas premiações de televisão, o objetivo é o prêmio máximo do cinema, e para isso, “Beasts of no Nation” precisava ser exibido na tela grande.

Com o boicote de redes como Cinemark, Regal, AMC e Carmike, o Netflix se abraçou aos pequenos cinemas, que toparam exibir o filme (nos mesmos moldes do que aconteceu com “A Entrevista”, no início do ano). Com a divulgação dos números do fim de semana, não foram poucos os que falaram em fracasso, já que “Beasts of no Nation” fez US$ 50.699 em 31 salas – média de US$ 1.635.

Os números pouco importam. O filme já está apto para concorrer ao Oscar. E caso venham as tão esperadas indicações, o longa deve voltar para as telonas, provavelmente em um circuito maior, e desta vez, com muito mais nome.

E o filme?


Baseado no romance escrito por Uzodinma Iweala, “Beasts of no Nation” conta a história de Agu (Abraham Attah), que tem a sua vida roubada ao ser forçado a lutar como criança-soldado na guerra civil de um país do Oeste africano.

Era para ser o filme de Idris Elba, que dá vida ao Comandante, o líder do batalhão. O inglês, mais uma vez, tem uma atuação de destaque. Mas quem rouba todas as cenas é Attah. O ganês de 14 anos, que nunca havia trabalhado como ator, dá um show ao expressar os sentimentos conflitantes do menino que perde a infância para os horrores da guerra.

Como roteirista, Fukunaga é corajoso. Mostra que no campo de batalha não existe glória, apenas mortes. A guerra não é romanceada como estamos acostumados a ver em outros filmes. Além disso, o texto não se preocupa em mostrar as motivações do conflito. Não existe um certo e outro errado, tanto que a maioria dos soldados não sabe nem os motivos pelo qual lutam. "Eu prefiro ser um documentador do nosso tempo em um formato ficcional do que fingir que nada disso está acontecendo", diz o cineasta.


Na direção, o californiano mostra porque é um dos mais promissores desta geração. Ele sabe conduzir uma história de violência extrema, mas que não é explícita. A visão é pessimista, já que mesmo com a “euforia” da guerra, a batalha é mostrada com tristeza. Muito disso, por tirar o melhor dos seus atores, que podem surpreender no Oscar (Attah já levou o prêmio de revelação no Festival de Veneza).

Além disso, Fukunaga também assina a direção de fotografia, setor em que ele demonstra talento acima da média. Nos minutos iniciais, apesar da pobreza da África, a paleta de cores cria um clima de leveza, mesmo com o conflito que ocorre paralelamente. Mas não demora muito para que o tom de guerra entre em cena, com o vermelho-sangue, funcionando como um personagem. O cineasta também sabe ousar, como na cena em que demonstra o efeito das drogas em Agu.

Se Fukunaga faz o filme atrás das câmeras, na tela, ele só existe graças a Elba e Attah. O primeiro, que também produz o longa, cria um personagem ímpar. O Comandante é um vilão. Não tem ideologia, é movido apenas pela ganância, e como o rei do xadrez, fica atrás da linha de ação, vendo os peões sendo levados pela guerra. Sua melhor arma de motivação são as drogas. Elas sim comandam dentro de cada soldado. Ao mesmo tempo, é um líder carismático, que cria até mesmo empatia.


Mas o filme é do menino. Agu é uma criança como as outras. Um menino levado, mas que não esconde a inocência. Não entendia o que era a guerra que se aproximava e foi obrigado a ter que lutá-la. A cena em que ele mata sua primeira vítima causa um embrulho no estômago, já que o expectador se sente no lugar do garoto.

A guerra transforma Agu, que troca as palavras pelos tiros. Em certo ponto do filme, só ouvimos a voz do menino em seus pensamentos, quando ele tenta falar com Deus e refletir sua realidade. Uma criança que sabe que mesmo se aquilo acabar, não será mais uma criança. Em um dos diálogos, ele destaca que viu e fez coisas terríveis. Que se sente um animal. Mas que tenta não pensar nisso para não ficar triste.



Destaco uma das reflexões de Agu:
– Sol, por que está brilhando neste mundo? Estou esperando para pegar você com as minhas mãos e espremer tanto que não poderá brilhar mais. Assim será sempre escuro e ninguém terá que ver todas as coisas terríveis que estão acontecendo aqui.

É um filme pesado, que toca em feridas que na esquecemos que existe. “Como uma sociedade, nós temos sido privados de imagens de guerra. Eu acho que se mais pessoas vissem como a guerra é horrível, haveria uma ação mais global para impedi-la”, afirmou Fukunaga. “É a chance de mais de 60 milhões de pessoas terem um pouco mais de educação do que está acontecendo em outra parte do mundo”, completa Elba.

Que o Netflix continue investindo em produções deste porte, e que saiba manter o hype, caso queira entrar com força no Oscar do ano que vem.

Já para Fukunaga, que ele tenha o respaldo necessário para continuar contando suas histórias (ele já teve as asas cortadas quando tentou dar outra roupagem para o remake de "It"). Imagino o que um cara desses é capaz de fazer com dinheiro sobrando. Ele já apontou o interesse em dirigir um filme do 007 com Idris Elba. De qualquer forma, é um nome que ouviremos muito daqui pra frente!

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